Vamos ver três
casos de resistência à vocação: Abraão e
Sara resistem porque não conseguem crer na vocação e, por isso, apresentam
caminhos alternativos. Moisés
resiste porque tem medo da vocação e não quer comprometer-se. Elias
resiste porque confunde o Deus que chama com a imagem que ele mesmo se fazia de
Deus e, por isso, sem se dar conta, busca a resposta numa direção errada. São
três casos de vocação de pessoas que viveram antes de nós. São, ao mesmo tempo,
arquétipos, modelos, símbolos do que acontece ou pode acontecer com todos nós.
São espelhos, nos quais reconhecemos algo de nós mesmos. Eles nos ajudam a
entender melhor o que se passa dentro de nós.
O Chamado de
Abraão e Sara
Situando o chamado
Século
VI antes de Cristo. O povo estava no cativeiro da Babilônia. Abraão e Sara tinham saído para a Palestina em busca
da Terra Prometida. O povo estava na escuridão (Lam 3,2-6), sentia-se
injustiçado por Deus (Is 40,27; 49,14), tinha perdido a auto-estima, achava que
sua vida já não tinha valor nenhum e que todo o seu esforço não adiantava para
nada (Is 49,4). Vivia oprimido e disperso, sem encontrar os sinais da presença
de Deus na vida (Sl 77,8-11). Muitos tinham se acomodado e diziam: “Deus se
esqueceu de nós” (Is 40,27). Abandonaram Javé e começaram a crer nos deuses do
império da Babilônia que lhes pareciam mais fortes!.
E
no entanto, foi a esse povo desanimado e sem futuro que Deus estava chamando
para ser Luz das nações (Is 42,6; 49,6). Sua vocação era anunciar a justiça (Is
42,6), libertar os oprimidos (Is 61,1), unir as tribos de Jacó (Is 49,5-6),
levar a mensagem de Deus até os confins da terra (Is 49,6). Difícil crer num
chamado assim! –“Quem somos nós para
realizar uma vocação assim!” De fato, a maioria nem lhe dava atenção. Dava
risada. Mas um grupo pequeno, discípulos e discípulas de Isaías, começou a lembrar e aprofundar a história de Abraão e Sara. Em vez de desanimar, diziam o contrário: “É agora que nós temos que ser Abraão e Sara! Esta é a nossa vocação!” E repetiam ao povo:
“Vocês que buscam a justiça e procuram a Deus. Olhem para a rocha de onde foram talhados, olhem para a pedreira de ontem foram extraídos. Olhem para Abraão, seu pai, e para Sara, que os deu à luz! Quando os chamei, eles eram um só, mas se multiplicaram por causa da minha bênção!” (Is 51,1-2)
Lembrando a história antiga de
Abraão e Sara, em cuja terra estavam exilados, em vez de desanimar, os
discípulos de Isaías se enchiam de esperança: “Nossos pais Abraão e Sara
conseguiram! Nós também vamos conseguir!” Hoje acontece o mesmo. Muitos se
acomodam, mas outros dizem o contrário: “É agora que nós temos que ser Zumbi!
Tiradentes! Santos Dias! Oscar Romero! Padre Josimo! Irmã Doroty! Esta é a
nossa vocação!”
Para ajudar o povo do cativeiro
a descobrir e assumir esta sua vocação, os discípulos de Isaías começaram a
contar novamente a história de Abraão e Sara, mas a contavam de tal maneira que
o povo pudesse descobrir nela sua própria vocação e a maneira de como
realizá-la. As narrações sobre Abraão e Sara, conservadas no livro de Gênesis,
refletem não só a história do casal no longínquo passado de 1800 antes de
Cristo, mas também, como num espelho, a situação difícil e sem horizonte do
povo no cativeiro da Babilônia. A maneira dramática como é narrada a história
de Abraão e Sara deixa transparecer como era difícil para o povo do cativeiro
crer na vocação que lhe vinha de Deus e sugere, ao mesmo tempo, como ele devia
fazer para crer na vocação e assumi-la. Estas narrações também são espelho para
nós hoje refletirmos sobre a nossa vocação, sobre o nosso chamado.
O chamado
Eis como começa o chamado para sermos Abraão e Sara,
para refazermos a história:
Javé disse a Abrão: "Saia de sua terra, do meio de seus parentes e da casa de seu pai, e vá para a terra que eu lhe mostrarei. Eu farei de você um grande povo, e o abençoarei; tornarei famoso o seu nome, de modo que se torne uma bênção. Abençoarei os que abençoarem você e amaldiçoarei aqueles que o amaldiçoarem. Em você, todas as famílias da terra serão abençoadas". Abrão partiu conforme lhe dissera Javé. E Ló partiu com ele. Abrão tinha setenta e cinco anos quando saiu de Harã. Abrão levou consigo sua mulher Sarai, seu sobrinho Ló, todos os bens que possuíam e os escravos que haviam adquirido em Harã. Partiram para a terra de Canaã e aí chegaram. (Gn 12,1-5)
A
promessa de ser pai de um povo e fonte de bênção para toda a humanidade é uma
vocação bonita que atrai. Vocação importante de grande alcance. Mas a condição
para poder ser pai de um povo é ter ao menos um filho. Abraão já tinha 75 anos
e sua esposa Sara era estéril e avançada em idade. A condição para Abraão crer
na sua vocação era crer em Sara, crer que Sara pudesse ter um filho. Difícil
crer numa promessa assim! Era mais fácil crer no projeto que os dois iam
elaborando como possível alternativa para uma promessa aparentemente
impossível.
As propostas alternativas
Foram
três as propostas alternativas que os dois elaboraram. Mas também foram três as
pancadas que levaram, três os impasses que enfrentaram, três os fracassos que
sofreram, até renascer e descobrir o caminho. Tem gente que leva dez pancadas,
outros caem vinte vezes até aprender. Outros não levam pancada nenhuma nem
caem, porque já estão deitados no chão, são humildes. Vejamos as propostas
alternativas de Abraão e Sara:
A primeira
proposta alternativa à promessa de Deus: Eliezer
Humanamente
falando, a vocação de Deus ultrapassava as possibilidades reais do casal.
Abraão já era velho e Sara não podia ter nenê. A primeira proposta de Abraão
para tentar uma saída foi a de apresentar Eliezer, seu empregado, como
substituto de um (im)possível filho (Gn 15,1-6). Conforme as leis da época, Abraão
poderia adotá-lo como filho. O filho de Eliezer seria neto de Abraão, e a
promessa de ser pai de um povo estaria garantida, a vocação estaria realizada.
No fundo, Abraão não acreditava na promessa. Mas Deus disse: “Eliezer, não! Vai
ter que ser filho seu!” (cf. Gn 15,4). É a primeira rasteira. Tudo voltou à
estaca zero!
A segunda
proposta alternativa à promessa de Deus: Ismael
A terceira
proposta alternativa à promessa de Deus: Isaac
Abraão
recebeu a visita de três peregrinos e os recebeu com muita hospitalidade (Gn
18,1-8). Os três diziam que Sara ia ter nenê no ano seguinte. Sara riu (Gn
18,9-15). Abraão também riu (Gn 17,17). Todos rimos, porque não acreditamos em
nós mesmos, nem na vocação. Só acreditamos no que nós fazemos para Deus, e não
no que Deus é capaz de fazer por nós. Mas finalmente, Abraão consegue crer em
Sara, e nasce o filho que recebe o nome de Isaque,
o que significa Risada (Gn 21,1-7).
De Deus não se ri. Falou, está falado! Podes crer! O nascimento de Isaque
clareou o horizonte. Finalmente, o povo estava garantido, a vocação estava
realizada. A bênção prometida ia poder irradiar para todas as nações da terra.
Mas aqui acontece uma coisa muito sutil. Agora que Isaque nasceu, a esperança
de Abraão tem um fundamento concreto e palpável: o filho. E imperceptivelmente
o fundamento da esperança passa de Deus que oferece o dom, para o dom oferecido
por Deus. E aí a palavra de Deus chega até Abraão: “Vai sacrificar o teu filho Isaque no lugar que eu te mostrar!” (Gn
22,1-2). É a terceira rasteira. Estaca zero de novo. Tudo voltou para antes do
começo.
A resposta final
à promessa de Deus: a entrega total
Desta vez, Abraão não
discute, não diz nada. Ele é obediência muda. Apenas age (Gn 22,3-10). Não se
fica sabendo o que ele pensa. O texto não informa. Cada um de nós, lendo o
texto e confrontando sua atitude com a de Abraão, deve preencher a informação
que falta no texto. No último momento, Deus manda Abraão parar. Não pode
sacrificar o filho (Gn 22,11-19). Basta a obediência, interpretada pela carta aos
hebreus da seguinte maneira: “Abraão
acreditava que Deus é capaz de tirar vida da própria morte”, e acrescenta: “Isso é um símbolo para nós” (Hb
11,17-19). “Abraão acreditou em Deus e isto lhe foi imputado como Justiça, e ele foi chamado amigo de Deus” (Tg
2,23; Rom 4,3; Gn 15,6).
“Isso é um símbolo para nós”
(Hb 11,19). De que maneira? Poderíamos continuar o
comentário da carta aos hebreus dizendo: Todos nós, casados ou solteiros, todos
e todas temos um Isaque, do qual não abrimos mão, que consideramos o fundamento
da nossa vida, e sem o qual não poderíamos imaginar nossa vida. Chegará o dia
em que Deus (a vida) pedirá a mesma coisa: Sacrifique esse seu Isaque, para que
a esperança seja colocada em Deus, só nele!
Responder à vocação,
comprometer-se de fato, é um processo, que ocupa a vida inteira. É fruto de
lenta e dolorosa purificação. É como descascar uma cebola. Você tira uma casca,
e terá outra casca para tirar. Você grita: “Pare! É o miolo!” E não é o miolo,
é casca. Cebola não tem miolo. Só tem casca. E enquanto descasca a cebola você
chora. Até descobrir que não temos miolo. Só temos casca, pois não fomos feitos
para nós mesmos, mas para Deus e para os outros.
FONTE: Livro: Vai,eu estou contigo
FONTE: Livro: Vai,eu estou contigo
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